Capítulo I – Outubro
Capítulo II – Oásis
‘Cuidado!’ – gritava o grande amigo ao mesmo tempo que de um golpe seco me parava pelo ombro impedindo que colocasse o pé na estrada. Completamente absorvido numa maré de pensamentos enquanto percorríamos as ruas da ilha Gamla Stan, local onde nasceu Estocolmo, e que até 1980 se chamava Staden Mellan Broarna, a cidade entre as pontes, que nem me tinha apercebido da scooter que rapidamente se aproximava.
Passado o perigo, continuou ele com um ‘Vê lá se acordas!’ – mas agora o tom de voz era outro, mais calmo, sentia e cheirava-se a pitada de pimenta, de escárnio. Tinha-se apercebido que eu não estava ali, olhava mas não via e certamente pensava na noite passada. Estava certo, conhece-me bem. Compenetrado, pensava eu, a cada passo em falso por entre os paralelos desnivelados, se ontem não teria, também, dado um. É certo que o momento foi único, repleto de uma emoção quase selvagem, e como tal natural, instintiva e pura. Mas não seria a força motriz apenas, e só, pura atracção? O que se esconderia por detrás da cortina vermelho paixão? Quereria eu ouvir as três pancadas de Molière e começar esta peça cujo estilo me era completamente desconhecido? Seria um romance, apaixonado, captivante, que me prenderia para o resto da vida? Uma comédia, um divertimento momentaneo que recordaria mais tarde como um capítulo de uma juventude rebelde? Ou um drama, policial, desastroso período de sentimentos disparados ao acaso sem nunca acertar o alvo, de rebeldia para com a sinceridade em mim próprio?
Caminhávamos agora em direcção a Stortorget, palco de um banho de sangue em Novembro de 1500 quando o Rei Cristiano II da Dinamarca massacrou os nobres suecos. ‘Não acabe o teu coração como estes acabaram!’ – dizia com um brilho nos olhos, tamanho era o requinte da ironia e o orgulho que tinha nela. Incisivas, acurada precisão e clareza suficiente, eram assim as suas intervenções. De certa forma, representavam a falta de lucidez de que eu, nós, todos somos vitima quando dos nossos assuntos pessoais se trata. Nessas alturas, subjectividade é como um oásis no deserto e sortudos são os que o conseguem ver e da sua água beber. A distância que devemos ter de nós mesmos nessas alturas é crucial para a objectividade e realismo das decisões tomadas. Claramente, eu não tinha, estava de tal forma embebido no líquido ardente de tais emoções, que era tudo menos a água do oásis, que não seria, provavelmente, falso alarme a discreta, subtil e comedida ironia.
Sempre um pouco distante e reservado, pergunto-me se não é essa distância que lhe permite ver com clareza o oásis dos desertos que vai percorrendo. Nunca o vi duvidar de uma decisão, como se soubesse exactamente e com precisão que o passo que dava em cada momento era o certo. Nem quando se afastou do que poderia ter sido o seu, um grande amor.
Conheciam-se como ninguém. Começaram por beber, todos os dias depois das aulas, no Alquimia, o bar da universidade, a cerveja da praxe. Tornou-se hábito, uma tradição. Rapidamente começaram a desejar o anoitecer ainda de manhã, o gradual escurecer do céu, como que esconderijo para os encontros românticos disfarçados pela animação induzida pelo álcool. Conversa atrás de conversa, era ver os diferentes temas, os mais diversos assuntos da actualidade, serem escrupulosamente passados em revista durante a tarde, noite dentro, numa discussão acesa, apaixonada onde ambos defendiam as suas convicções como um soldado defende a pátria e ainda que estivessem os dois habitualmente em desacordo, em guerra, era no intimo o que desejavam. Era aquele jogo do poder que os seduzia, que transformava tudo em seu redor vazio, desprovido de interesse. O interesse de cada um estava, ali mesmo, à sua frente, do outro lado da mesa. A atracção estava lá, era sentida por ambos, mas, a quem o primeiro atrevimento? Mais uma vez, com a distância necessária, ele conseguia ver o oásis daquele deserto. O próximo passo, o certo, sem hesitação nem pensar duas vezes.
O momento não era o certo. Brevemente partira para Barcelona por um período nunca inferior a seis meses e sem previsão para a data de regresso. Poderia pensar em viver o presente, aproveitar o tempo de que ainda disponham para estar juntos. Mas, segundo ele, não haveria tempo para a relação evoluir para além da tórrida, ardente e embriagante paixão. Paixão cuja chama se apagaria em razão da distância que se entreporia entre eles. Não seria uma distância só física, também emocionalmente abrir-se-ia um fosso não mensurável e muito maior que os 1250 quilómetros que separam Lisboa e Barcelona. Seria como se, a pouco e pouco, o oxigénio necessário para manter a chama viva fosse, por eles consumido a cada vez que inspiravam e incapazes de contrariar iriam também lentamente sucumbir à sua extinção. E depois? Voltaria tudo ao mesmo? Seriam capazes de voltar aos encontros sobre o cair da noite acompanhados da cerveja, a sua tradição? Conseguiriam ter o discernimento necessário para não se magoarem e não desenvolverem o ódio inerente a qualquer extinção de um amor?
Nunca se saberá, a decisão foi retirar a tropas. Aquela batalha estava perdida, mas porque não num futuro próximo, ou mais longínquo, fosse o que fosse, porque não tentar nessa altura ganhar a guerra, a guerra contra o destino. Entretanto, até à sua partida para Barcelona, as tardes de convívio, sedução, embriaguez continuaram. Mas ele sentia, ele sabia que aquele amor, aquele amor que não passaria, naquele momento, do estado platónico, um estado rarefeito onde as interacções são mínimas mas onde predominava a estabilidade energética de uma grande amizade, aquele amor era o amor da sua vida.