quinta-feira, 27 de março de 2008

Inverno Esquecido - I

Capítulo I Outubro

Um café em final de tarde à beira mar. O saborear delicadamente aquele gosto amargo que nos acorda, desperta e aguça os sentidos. O calor de final de dia que nos aquece suavemente a pele. Parece Verão ainda que seja Outono. A mistura de cores e sombras deslumbra-nos a vista por entre as palavras da conversa com o grande amigo.
‘Grande noite ontem!’ – exclama em tom jocoso.
‘Não fales tão alto!’ – retorqui em seguida. A ressaca física e emocional estavam instaladas por todas as partes do meu corpo. Mas tinha, de facto, sido uma grande noite. Inesquecível. E com ela o melhor beijo de toda a minha vida. Estávamos no final de Outubro, as folhas caíam lentamente das arvores, na sua dança e ritual próprios, deixando-se levar pelo vento, pelo sabor da vida, nunca sabendo onde aterrar. Naquela noite fiz o mesmo.
Estava em Estocolmo. De férias com o grande amigo. De estatura média, este rapaz meio magro meio musculado de olhos castanhos, cabelo escuro, curto, como a sociedade convencionalmente chama corte à homem, era um folião, sempre que podia a resposta estava lá, na ponta da língua. E quase sempre acrescida de pimenta, uma pimenta especial, refinada, com o devido panache. Chamavamos-lhe o On-Off. Mas não desde sempre, a alcunha vem da viagem de finalistas que fizemos em Fevereiro de 2005. Rumámos às quentes terras brasileiras do estado da Bahia, mais precisamente à cidade de Porto Seguro onde, no já longínquo 22 de Abril de 1500, Pedro Alvares Cabral baptizava de Ilha de Vera Cruz depois de 45 dias de viagem. Alguns séculos mais tarde, guerras, revoluções sociais e industriais volvidas, enfim, uma lavagem profunda da cara da terra, a nossa viagem de avião durou, apenas, 10h30m. Bem, apenas para alguns, uma eternidade para a Pincezinha, a mais nova do grupo de finalistas. Ainda virgem do imenso céu azul, a nossa amiga embarcava para a sua primeira longa viagem, por ela comparada a uma tortura. Dois filmes mais tarde, algumas horas de babysitting pelo meio e uma mão dorida de tanto tentar suster o avião pelo banco, a Princezinha, todos, aterrávamos no pequeno aeroporto de Porto Seguro.
A primeira impressão, que ia morrer. Colocar o pé fora do avião foi como entrar numa sauna tão húmida que cortava a respiração. Um calor tal que comecei a transpirar de cada poro da minha pele. Desci as escadas do avião e pude ver o aeroporto. Era pequeno, feito de madeira, rústico, transpirava um ar simpático, de boas vindas ao turista recém-chegado. O acolhimento perfeito para o que ia ser uma semana de autêntico on-off para o meu grande amigo. Pois, para ele era ressaca sim, ressaca não, mas íamos todos, sem excepção, deambulando de noite em noite, de festa em festa, de caipirinha em caipirinha, bebendo, rindo e dançando.
O dia, esse era preenchido com o típico passeio turista aos locais mais solicitados da região. Era observar, sentir, apreciar e registar. Os lugares. As praias, a Fazenda da Mãe Teresa, os corais, o local onde se encontra o Padrão símbolo da chegada dos portugueses, a tribo dos índios Pataxó. As gentes. É sem dúvida recordar a simpatia e hospitalidade. Características, incondicionais, dos povos do mundo. E este povo nórdico que agora descobrimos não é excepção.
A contrastar com a chegada a Porto Seguro, esta, a Estocolmo, era coberta de chuva. Coincidia com o principio das estações do frio, o declínio da duração da luz solar, o entristecer dos dias. Não seria de todo, segundo muitos amigos e conhecidos, a melhor altura para visitar as terras douradas do norte da Europa, da Escandinávia. Prontamente respondíamos, ‘Poderemos sempre voltar.’ Mas, segundo eles, não seria Inverno, não veríamos, portanto, tudo coberto por um manto branco que, a nós, gentes do sul, nos é invulgar, diferente e como tal, desperta curiosidade. Não seria Primavera nem Verão, não veríamos o florir da vida depois de uma hibernação forçada pelo frio e pela noite. Não estaríamos presentes nas festas. No Midsummer, celebrado no fim-de-semana mais próximo do 24 de Junho, um marco ao dia mais longo do ano. Ou no dia 13 de Dezembro, o dia de Santa Lúcia, onde os festejos têm o intuito de iluminar um dos dias mais escuros do ano. Conta a tradição que Lúcia e os seus seguidores vêm, habitualmente, de madrugada, trazendo luz à escuridão. Curiosamente recordo um sorriso que tem o mesmo efeito.
Uma menina, simples, delicada e ainda assim mulher, forte, mais do que pensa. Apelidada de Emplastro, a alcunha carinhosa cai-lhe bem. Não há como ela para se colocar à frente de uma objectiva. Mas, ainda bem que o faz, as suas feições são de uma fotogenia tal que acrescenta alegria a qualquer foto. Um sorriso genuíno, quase sempre sincero. Os olhos são castanhos e simetricamente recortados de uma pele branca e, ainda que bastante morena no Verão, sempre macia e suave. O cabelo castanho escuro é liso e sempre com um corte moderno. É uma das minhas grandes amigas, a confidente.
Ela era diferente das outras vozes que ecoavam a má escolha do Outuno para a viagem. Encorajando-nos, dizia ela, ‘É nas alturas não turísticas que temos a melhor precepção que alguma vez poderemos ter das pessoas, da cultura, da vida quotidiana, do povo que queremos conhecer no período tão curto que dispomos.‘ Ela tinha, tem razão. Certamente influenciada pela diversidade, em deterimento da identidade, que todos os anos se instala durante a época turística nos seus lugares de eleição. No tempo do calor, quando os dias são longos, e o céu predominantemente azul celeste, é quase tão comum chegarem aos ouvidos ecos da nossa lingua mãe que de outras do mundo.

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