sexta-feira, 28 de março de 2008

Inverno Esquecido - II

Capítulo I Outubro
Capítulo II
Oásis

‘Cuidado!’ – gritava o grande amigo ao mesmo tempo que de um golpe seco me parava pelo ombro impedindo que colocasse o pé na estrada. Completamente absorvido numa maré de pensamentos enquanto percorríamos as ruas da ilha Gamla Stan, local onde nasceu Estocolmo, e que até 1980 se chamava Staden Mellan Broarna, a cidade entre as pontes, que nem me tinha apercebido da scooter que rapidamente se aproximava.
Passado o perigo, continuou ele com um ‘Vê lá se acordas!’ – mas agora o tom de voz era outro, mais calmo, sentia e cheirava-se a pitada de pimenta, de escárnio. Tinha-se apercebido que eu não estava ali, olhava mas não via e certamente pensava na noite passada. Estava certo, conhece-me bem. Compenetrado, pensava eu, a cada passo em falso por entre os paralelos desnivelados, se ontem não teria, também, dado um. É certo que o momento foi único, repleto de uma emoção quase selvagem, e como tal natural, instintiva e pura. Mas não seria a força motriz apenas, e só, pura atracção? O que se esconderia por detrás da cortina vermelho paixão? Quereria eu ouvir as três pancadas de Molière e começar esta peça cujo estilo me era completamente desconhecido? Seria um romance, apaixonado, captivante, que me prenderia para o resto da vida? Uma comédia, um divertimento momentaneo que recordaria mais tarde como um capítulo de uma juventude rebelde? Ou um drama, policial, desastroso período de sentimentos disparados ao acaso sem nunca acertar o alvo, de rebeldia para com a sinceridade em mim próprio?
Caminhávamos agora em direcção a Stortorget, palco de um banho de sangue em Novembro de 1500 quando o Rei Cristiano II da Dinamarca massacrou os nobres suecos. ‘Não acabe o teu coração como estes acabaram!’ – dizia com um brilho nos olhos, tamanho era o requinte da ironia e o orgulho que tinha nela. Incisivas, acurada precisão e clareza suficiente, eram assim as suas intervenções. De certa forma, representavam a falta de lucidez de que eu, nós, todos somos vitima quando dos nossos assuntos pessoais se trata. Nessas alturas, subjectividade é como um oásis no deserto e sortudos são os que o conseguem ver e da sua água beber. A distância que devemos ter de nós mesmos nessas alturas é crucial para a objectividade e realismo das decisões tomadas. Claramente, eu não tinha, estava de tal forma embebido no líquido ardente de tais emoções, que era tudo menos a água do oásis, que não seria, provavelmente, falso alarme a discreta, subtil e comedida ironia.
Sempre um pouco distante e reservado, pergunto-me se não é essa distância que lhe permite ver com clareza o oásis dos desertos que vai percorrendo. Nunca o vi duvidar de uma decisão, como se soubesse exactamente e com precisão que o passo que dava em cada momento era o certo. Nem quando se afastou do que poderia ter sido o seu, um grande amor.
Conheciam-se como ninguém. Começaram por beber, todos os dias depois das aulas, no Alquimia, o bar da universidade, a cerveja da praxe. Tornou-se hábito, uma tradição. Rapidamente começaram a desejar o anoitecer ainda de manhã, o gradual escurecer do céu, como que esconderijo para os encontros românticos disfarçados pela animação induzida pelo álcool. Conversa atrás de conversa, era ver os diferentes temas, os mais diversos assuntos da actualidade, serem escrupulosamente passados em revista durante a tarde, noite dentro, numa discussão acesa, apaixonada onde ambos defendiam as suas convicções como um soldado defende a pátria e ainda que estivessem os dois habitualmente em desacordo, em guerra, era no intimo o que desejavam. Era aquele jogo do poder que os seduzia, que transformava tudo em seu redor vazio, desprovido de interesse. O interesse de cada um estava, ali mesmo, à sua frente, do outro lado da mesa. A atracção estava lá, era sentida por ambos, mas, a quem o primeiro atrevimento? Mais uma vez, com a distância necessária, ele conseguia ver o oásis daquele deserto. O próximo passo, o certo, sem hesitação nem pensar duas vezes.
O momento não era o certo. Brevemente partira para Barcelona por um período nunca inferior a seis meses e sem previsão para a data de regresso. Poderia pensar em viver o presente, aproveitar o tempo de que ainda disponham para estar juntos. Mas, segundo ele, não haveria tempo para a relação evoluir para além da tórrida, ardente e embriagante paixão. Paixão cuja chama se apagaria em razão da distância que se entreporia entre eles. Não seria uma distância só física, também emocionalmente abrir-se-ia um fosso não mensurável e muito maior que os 1250 quilómetros que separam Lisboa e Barcelona. Seria como se, a pouco e pouco, o oxigénio necessário para manter a chama viva fosse, por eles consumido a cada vez que inspiravam e incapazes de contrariar iriam também lentamente sucumbir à sua extinção. E depois? Voltaria tudo ao mesmo? Seriam capazes de voltar aos encontros sobre o cair da noite acompanhados da cerveja, a sua tradição? Conseguiriam ter o discernimento necessário para não se magoarem e não desenvolverem o ódio inerente a qualquer extinção de um amor?
Nunca se saberá, a decisão foi retirar a tropas. Aquela batalha estava perdida, mas porque não num futuro próximo, ou mais longínquo, fosse o que fosse, porque não tentar nessa altura ganhar a guerra, a guerra contra o destino. Entretanto, até à sua partida para Barcelona, as tardes de convívio, sedução, embriaguez continuaram. Mas ele sentia, ele sabia que aquele amor, aquele amor que não passaria, naquele momento, do estado platónico, um estado rarefeito onde as interacções são mínimas mas onde predominava a estabilidade energética de uma grande amizade, aquele amor era o amor da sua vida.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Inverno Esquecido - I

Capítulo I Outubro

Um café em final de tarde à beira mar. O saborear delicadamente aquele gosto amargo que nos acorda, desperta e aguça os sentidos. O calor de final de dia que nos aquece suavemente a pele. Parece Verão ainda que seja Outono. A mistura de cores e sombras deslumbra-nos a vista por entre as palavras da conversa com o grande amigo.
‘Grande noite ontem!’ – exclama em tom jocoso.
‘Não fales tão alto!’ – retorqui em seguida. A ressaca física e emocional estavam instaladas por todas as partes do meu corpo. Mas tinha, de facto, sido uma grande noite. Inesquecível. E com ela o melhor beijo de toda a minha vida. Estávamos no final de Outubro, as folhas caíam lentamente das arvores, na sua dança e ritual próprios, deixando-se levar pelo vento, pelo sabor da vida, nunca sabendo onde aterrar. Naquela noite fiz o mesmo.
Estava em Estocolmo. De férias com o grande amigo. De estatura média, este rapaz meio magro meio musculado de olhos castanhos, cabelo escuro, curto, como a sociedade convencionalmente chama corte à homem, era um folião, sempre que podia a resposta estava lá, na ponta da língua. E quase sempre acrescida de pimenta, uma pimenta especial, refinada, com o devido panache. Chamavamos-lhe o On-Off. Mas não desde sempre, a alcunha vem da viagem de finalistas que fizemos em Fevereiro de 2005. Rumámos às quentes terras brasileiras do estado da Bahia, mais precisamente à cidade de Porto Seguro onde, no já longínquo 22 de Abril de 1500, Pedro Alvares Cabral baptizava de Ilha de Vera Cruz depois de 45 dias de viagem. Alguns séculos mais tarde, guerras, revoluções sociais e industriais volvidas, enfim, uma lavagem profunda da cara da terra, a nossa viagem de avião durou, apenas, 10h30m. Bem, apenas para alguns, uma eternidade para a Pincezinha, a mais nova do grupo de finalistas. Ainda virgem do imenso céu azul, a nossa amiga embarcava para a sua primeira longa viagem, por ela comparada a uma tortura. Dois filmes mais tarde, algumas horas de babysitting pelo meio e uma mão dorida de tanto tentar suster o avião pelo banco, a Princezinha, todos, aterrávamos no pequeno aeroporto de Porto Seguro.
A primeira impressão, que ia morrer. Colocar o pé fora do avião foi como entrar numa sauna tão húmida que cortava a respiração. Um calor tal que comecei a transpirar de cada poro da minha pele. Desci as escadas do avião e pude ver o aeroporto. Era pequeno, feito de madeira, rústico, transpirava um ar simpático, de boas vindas ao turista recém-chegado. O acolhimento perfeito para o que ia ser uma semana de autêntico on-off para o meu grande amigo. Pois, para ele era ressaca sim, ressaca não, mas íamos todos, sem excepção, deambulando de noite em noite, de festa em festa, de caipirinha em caipirinha, bebendo, rindo e dançando.
O dia, esse era preenchido com o típico passeio turista aos locais mais solicitados da região. Era observar, sentir, apreciar e registar. Os lugares. As praias, a Fazenda da Mãe Teresa, os corais, o local onde se encontra o Padrão símbolo da chegada dos portugueses, a tribo dos índios Pataxó. As gentes. É sem dúvida recordar a simpatia e hospitalidade. Características, incondicionais, dos povos do mundo. E este povo nórdico que agora descobrimos não é excepção.
A contrastar com a chegada a Porto Seguro, esta, a Estocolmo, era coberta de chuva. Coincidia com o principio das estações do frio, o declínio da duração da luz solar, o entristecer dos dias. Não seria de todo, segundo muitos amigos e conhecidos, a melhor altura para visitar as terras douradas do norte da Europa, da Escandinávia. Prontamente respondíamos, ‘Poderemos sempre voltar.’ Mas, segundo eles, não seria Inverno, não veríamos, portanto, tudo coberto por um manto branco que, a nós, gentes do sul, nos é invulgar, diferente e como tal, desperta curiosidade. Não seria Primavera nem Verão, não veríamos o florir da vida depois de uma hibernação forçada pelo frio e pela noite. Não estaríamos presentes nas festas. No Midsummer, celebrado no fim-de-semana mais próximo do 24 de Junho, um marco ao dia mais longo do ano. Ou no dia 13 de Dezembro, o dia de Santa Lúcia, onde os festejos têm o intuito de iluminar um dos dias mais escuros do ano. Conta a tradição que Lúcia e os seus seguidores vêm, habitualmente, de madrugada, trazendo luz à escuridão. Curiosamente recordo um sorriso que tem o mesmo efeito.
Uma menina, simples, delicada e ainda assim mulher, forte, mais do que pensa. Apelidada de Emplastro, a alcunha carinhosa cai-lhe bem. Não há como ela para se colocar à frente de uma objectiva. Mas, ainda bem que o faz, as suas feições são de uma fotogenia tal que acrescenta alegria a qualquer foto. Um sorriso genuíno, quase sempre sincero. Os olhos são castanhos e simetricamente recortados de uma pele branca e, ainda que bastante morena no Verão, sempre macia e suave. O cabelo castanho escuro é liso e sempre com um corte moderno. É uma das minhas grandes amigas, a confidente.
Ela era diferente das outras vozes que ecoavam a má escolha do Outuno para a viagem. Encorajando-nos, dizia ela, ‘É nas alturas não turísticas que temos a melhor precepção que alguma vez poderemos ter das pessoas, da cultura, da vida quotidiana, do povo que queremos conhecer no período tão curto que dispomos.‘ Ela tinha, tem razão. Certamente influenciada pela diversidade, em deterimento da identidade, que todos os anos se instala durante a época turística nos seus lugares de eleição. No tempo do calor, quando os dias são longos, e o céu predominantemente azul celeste, é quase tão comum chegarem aos ouvidos ecos da nossa lingua mãe que de outras do mundo.